sábado, 23 de maio de 2009

Prefácio

Deveria escrever um novo prefácio para este livro já velho. Confesso que a idéia não me agrada, pois isso seria inútil: não deixaria de querer justificá-lo por aquilo que ele era e de reinscrevê-lo, tanto quanto possível, naquilo que está acontecendo hoje. Possível ou não, hábil ou não, isso não seria honesto. Acima de tudo, não seria conforme tudo aquilo que deve ser, com relação a um livro, a reserva daquele que se escreveu. Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.

Para quem escreve o livro, é grande a tentação de legislar sobre todo esse resplandecer de simulacros, prescrever-lhes uma forma, carregá-los com uma identidade, impor-lhes uma marca que daria a todos um certo valor constante.

Sou o autor: observem meu rosto ou meu perfil; é a isto que deverão assemelhar-se todas essas figuras duplicadas que vão circular com meu nome; as que se afastarem dele, nada valerão, e é a partir de seu grau de semelhança que poderão julgar do valor dos outros. Sou o nome, a lei, a alma, o segredo, a balança de todos esse duplos.

Assim se escreve o Prefácio, ato primeiro com o qual começa a estabelecer-se a monarquia do autor, declaração da tirania: minha intenção deverá ser seu preceito, leitor; sua leitura, suas análises, suas críticas se conformarão àquilo que pretendi fazer; entendam bem minha modéstia: quando falo dos limites de meu empreendimento, pretendo limitar sua liberdade, e se proclamo a sensação se não ter estado à altura de minha tarefa é porque não quero deixar-lhe o privilégio de contrapor a meu livro o fantasma de um outro, bem próximo dele porém mais belo que ele. Sou o monarca das coisas que disse e mantenho sobre elas uma soberania eminente: a de minha intenção e do sentido que lhes quis atribuir.

Gostaria que um livro, pelo menos da parte de quem o escreveu, nada fosse além de frases do que é feito; que ele não se desdobrasse nesse primeiro simulacro de si mesmo que é um prefácio, e que pretende oferecer sua lei a todos que, no futuro, venham a formar-se a partir dele. Gostaria que esse objeto-evento, quase imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se fragmentasse, se repetisse, se simulasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reinvindicar o direito de ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro devia ser. Em suma, gostaria que um livro não se atribuisse a si mesmo essa condição de texto ao qual a pedagogia ou a crítica saberão fazê-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível.

É por isso que, ao pedido que me fizeram de escrever um novo prefácio para este livro reeditado, só me foi possível responder uma coisa: suprimamos o antigo prefácio. Honestidade será isso. Não procuremos nem justificar esse velho livro, nem reescrevê-lo hoje; a série dos eventos à qual ele pertence, e que é a sua verdadeira lei, está longe de ser concluída. Quanto à novidade, não finjamos descobri-la nele, como uma reserva secreta, uma riqueza inicialmente despercebida: ela se fez apenas com as coisas sobre ele ditas, e dos eventos dos quais se viu prisioneiro.

-Mas você acaba de fazer um prefácio!
-Pelo menos é curto.

Michel Foucault

2 comentários:

  1. foucault é a cabeça da alegria, de óculos

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  2. pois é...
    queria dz não, sabe?
    mas foucault é a cabeça. De óculos.

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