segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

A verdadeira culpa

O eu-lírico levantou para beber água na cozinha
e ficou lá de papo com a Creuza
enquanto isso a caneta foi, e contou tudo.

Não tenho sono

... tenho tédio. aliás nem tanto. acho que só tenho dedos, livros e um violão ilegalmente apropriado, afinal. nada muito funcional feito uma falência múltipla de apressos.

não obstante

dedico-me ao travestir desse anafórico desejo de folhear um dicionário de charmosos verbetes anacrônicos. pra te tirar uma canção de uns três versinhos ao pé do ouvido. alinhavar uns três acordes entre o ré com sétima e a pista da rodovia. meio dia, olhando a vida pedir carona
, resguardando nossos opositores sujos de graxa, areia e chocolate derretido.

domingo, 27 de dezembro de 2009

O Tambor

"Também me asseguram que é bom e modesto começar afirmando
que um romance não pode ter herói
porque se acabam os individualistas
porque a individualidade pertence ao passado
porque todo homem - cada homem e todos os homens igualmente -
está só e sem direito à solidão individual e constitui uma massa solitária
anônima e sem herói."

Gunter Grass.

Menos Bukowski

O vinho acabou, a música parou, o relógio caiu.
E, por fim, o José foi embora. Já não era sem tempo.

Eu queria ser outro, completamente dessa vez. Menos Bukowski, ler mafalda. Tocar estrelas e não cortes. Mas eu espero. Juro que quando tiver um jardim, eu terei mais aforismos. É que nem toda canção é feita para ser bela. Até lá, esbaldemo-nos em tanta feiura, que eu não quero o que é bonito, mas o que é inteiro. Nem o que é certo, e sim o que é sincero. Você vai sentir uma picada. Por isso me diga como vai a família, como foi seu dia e, por fim, como vai essa dor. Se for aguda, como um chute na canela, se verterem lágrimas dos seus olhos, verterão dos meus, se você sorrir, como eles sorrirão, eu recebo meus aplausos, mas se você cantar, como poucos cantarão, então bem-vindos, minha senhora, meu senhor.
Ao mais encantador dos shows de horrores.

Foguetes

Esperando pelos gritos numa casa de bolhas
apenas bocas, que eu tenho fones de ouvido.
indeed - eu não ligo para os bloquinhos
se eles não vierem caindo do céu em cores que não combinam.
Mas antes que os foguetes achem planetas
eu quero saber se os pecados ainda contam depois que perfurarmos a parede desse abaloado azul.

-cuz' we're out of your jurisdiction, pal.-
e como eu faço para me alistar nos space invaders.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Nanquin e borracha.

Eu queria um recomeço, ou mesmo, viver uma vida de papel, escrita a lápis, pra não ter de afogar pessoas ou lugares em tóxica tinta corretiva. Mas pessoas e lugares estariam a salvo. Pessoas e lugares primeiro. A borracha suja que tentei usar é que me torna esse borrão que sou, movendo-me entre todas essas obras de arte. Meus contemporâneos, outros borrões, aparentam simplesmente felizes em sua falta de forma, leia-se neles: liberdade.

Eu não nasci para ser borrão.

Eu me tornei um por ser um desenho mal planejado desde o início. Eu tentei me apagar e tornei-me livre, leia-se: marginalizado. Agora eu tento me apegar às obras livres, quando elas não percebem que sou uma mera imitação acidental. Aprendo tardiamente a poder subir por sobre os carros e gritar frases de efeito. No meu caso, efeitos desconexos. Aprendo a poder enviar poemas em mensagens de texto a vultos que passam pelos frames da minha vida (diga-se: existência). Aprendo a poder ser desnecessariamente indiferente ao meu próximo
bíblico, aqui entenda-se: você, e a reservar espaço no meu coração borrado a qualquer que me escreva um bom dia um pouco mais colorido. Aprendo a poder, porque posso. Ainda que precise visitar cadafalsos e decidir se faço porque posso ou se fico onde cheguei, meu atual estado civil de apego, que meu ser desforme me dá a desleixada e perigosa liberdade de chamar de amor. A liberdade de uns magoa o coração saudável daqueles que puderam ter em seus desenhos, uma arte-final, onde eu vejo princípios e outros vêm limites. Meus contornos vieram falhos, minhas certezas me escapam como seu suco de laranja de um recipiente sem fundo, onde eu colocaria coca-cola.

A ordem das coisas

Eu vou te esperar no quintal
de pernas cruzadas sobre a grama molhada
que eu não fiz questão preparar para outros além de nós três,
onde tudo é tão à vontade

Depois de tudo,
quando nada mais desse mundo restar,
minha imagem sobre a grama, pernas cruzadas e camiseta branca, olhando para um bebê e para a íris dos teus olhos por através de uma lente qualquer,
não trará nada além de nostalgia a um cósmico alguém
pós-apocalíptico.


Eu vou te esperar
e você vai nos ver aprendendo a andar emoldurados pela janela
enquanto a água condensa na parede e meu pão com manteiga esfria no pratinho branco.
Ela vai gostar que tiremos as bordas do pão e é por isso que te esperamos.
Apenas num futuro muito distante não entenderão meus lábios quando eu,
ao te vir distraída
nos espiando pela janela embassada de água do café e orvalho da manhã, disser:
- Eu te amo.

Enquanto o passado se repete dentro da caixinha,
contando dias e viagens para os valores sentimentais que guardarmos nas coisas,
numa gaveta esquecida dentro do quarto ainda desarrumado.
Enquanto nossos três risos o desarrumam mais ainda.
Rolando sobre a cama, fingindo fugir das cócegas, ecoando pelo corredor e voando
feito pó pela janela.
O céu vai esquecer que um dia foi azul,
ser de uma infinitude branca que abraça o mundo
nos deixar dormir em plena manhã nublada do dia que quisermos que seja.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Um passo

Vivendo e andando e fugindo e saltando
subindo
descendo
ficando
ficando

ficando.

mantendo.

aqui
eu não penso mais
eu páro
estaciono
estagno

projeto, trabalho, dinheiro, amor
suor, suor, suor
e dor
o tempo passa
o tempo passa
o tempo
tem...
passou
eu parei
ele parou:

- Você vem sempre aqui?
- Eu estou sempre aqui.
- Sempre estará?
- Sempre.
- Eu não volto, você fica?
- Fico, sempre.
sempre...
a primeira vez
a única vez
você ouviu amor
única
última
a próxima será outra
outro amor
outro começo
outros corpos
você
o outro
um entremeio
eu
entremeio
outro
você
sempre, agora e nunca mais.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

É só delírio

Palavras de loucura soam melhor em silêncio. Palavras e loucura e pensamentos não combinam com meu vestido amarelo. Essa loucura toda só me deixa a deriva em volta do que eu realmente quero. E quando quero nem penso. Me jogo. E como boneca de pano... Bonecas de pano sempre sobrevivem a queda. Costuras e remendos e velhos olhos novos. Estou pronta para um novo início feito de retalhos encardidos. Porque tudo me parece um grande ciclo. Uma grande roda gigante enfeitada de luzes de cores profundas... ou talvez sejam só meus olhos que se aprofundam em cores e luzes. Elas parecem mais interessantes desfocadas. No meu enfoque desfocado. Luzes são profundas e cores num mar de luzes.
E voltamos novamente a loucura. Aquela que se escorre sobre mim. E que me faz sentir assim. Ou quem sabe seja só eu tentando fazer sentido em algo. Perante um todo sou apenas mais uma a andar na contramão. São muitos os estranhos assim como eu. Diferentes de mim. Em contradição a contramão é só mais um caminho a seguir. As roupas minhas guardadas em um guarda-roupa desconhecido. E o meu cheiro no pescoço de um homem que nem sequer sabe o meu nome. O meu perfume não é meu. As minhas roupas estão na vitrine e quem quiser pode ir comprar. E é claro que a vendedora não irá mencionar o meu nome. Não me usará para fazer uma propaganda. É para isso que servem as modelos.
Embora eu seja mais uma. Fico com esse ar de ser diferente. E escrevo como se fosse diferente. E me comparam com um ou com outro. E dizem que minhas frases são adaptações de um terceiro. E eu me esforço, porém acho que é realmente em vão. Até tento falar diferente. Mas a maneira que falo me denuncia e me coloca no meu grupo de estranhos comuns. Embora ache que não pareço muito com eles, insistem em dizer que sim. E quando digo que não, escuto mais vozes dizendo que não. O sim. O não. Não há escapatória para mim. Sou alguém. Mais um alguém a fazer parte disso. Mesmo que não queira. Outros também não querem.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Escuta

Grande, monstruoso amor
desentendido, despedaçado.
Permanecestes sozinho em muitas viagens na vida.
Caminhas sozinho em muitos caminhos da vida.

Eu posso dividir meu segredo com você se disser em qual das minhas mãos ele está. Qual dessas duas mãos sempre tão cheias de dedos, que dedilham fios de cabelo e fios de navalha. Sangrando o mesmo sangue e tocando os mesmos acordes. O mesmo arpejo que resume a vida.

Menos segredo ele será. Nosso segredo a dois
nos torna um
e incompleto. Mas antes de ser eu,
sou o outro.
Quando você não me tem por inteiro - me des-inteiro - me desfaço, desintegro, despedaço. À deriva minhas peças de quebra-cabeças flutuam dentro de bolhas de sabão e me remontam pelo que eu quero te ser. Eu, esse monstro de costuras aparentes, sentidos hipertrofos, trocando pares e pedaços como numa dança de grandes salões.
Sem segredos, nos completamos, você a mim e eu ao nosso amor, até que indolor verdade leve-nos a nossas posições. Sem pares, sem peças, sem existência.

domingo, 6 de dezembro de 2009

A viúva

Ele te deu flores e te pediu que calasse em silêncio. Ele te pediu flores e em silêncio desceu. Calou. Trouxe-te dores. Teus soluços ecoavam. Teu choro é como chuva em noite silenciosa. Tu deitas por cima do peito dele. E posso ver que ele não chora. É estático. Imóvel como deve ser. Ele desce. Posso sentir tuas dores no teu silêncio. Entre as flores que ninguém comprou. Uma viúva sem vestido negro. Uma viúva que engolia o choro. Esquece que não se chora com a boca. Então lágrimas sempre descem. Sempre salgam bocas alheias e próprias. Boca salgada com batom de cereja.
Dos outros as dores não importam. Não há ninguém ali mais perdida que tu. Aos meus olhos os olhos alheios não são nada. Os olhos alheios não te conhecem como minha boca. E tua boca me fala palavras soltas. Nenhuma faz sentido. Nada ali é sentido para mim, além do teu choro. O choro alheio é apenas barulho ecoando. Um coro. Uma canção que tu não cantas. E se não cantas nestas noites. Não quero escutar mais nada. A voz alheia é só parte do cenário. Assim como aquelas flores.
Flores molhadas me lembram o cheiro do teu cabelo. Ou talvez, eu queira te lembrar desta maneira. Com cheiro de flores que caem em túmulos alheios. Cemitérios a parte, sempre me interesso por tragédias. As alheias são as melhores. Principalmente molhadas com lágrimas tuas. Teu soluço a me fazer um alguém a mais. A te consolar um homem maior. É quando tu choras que se inclina sobre meu corpo. E eu não posso negar mais. Não vou me negar mais. O teu choro alimenta o meu egoísmo em enterros alheios.
Alimenta-me com sensações de poder absoluto sobre mulher frágil. Com sensações de mulher frágil sobre homem absoluto. E somos todos adultos. Nossas regras que desenhamos. Linhas que flutuam em músicas descompassadas de uma banda qualquer que toca. Sou eu a segurar essas linhas e essas regras. A puxar o teu cabelo e te consolar em meu ombro. E a pedir sutilmente que durma comigo esta noite.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Idioteca

Parando assim para olhar pra cima eu percebo - já não fazia isso tinha um certo tempo. O céu ainda tem a marca dos fogos de dia desses, as manchas coloridas na tela preta, as naves alienígenas fazendo treinamentos acrobáticos e eu me pergunto se isso deixa os americanos em alerta. Mas só acho mesmo que eles só estão se preparando para o dia da independência de alguma coisa lá do planeta deles. O meu melhor amigo, um modelo X-114, bebeu demais, não acho que ele vá acordar ainda hoje. Ele odeia que eu chegue perto da janela, o psiquiatra já me explicou que faz parte da paranóia cibernética dos últimos anos. Esses modelos têm trabalhado demais, é fato. Dia raro esse, de sentar, beber e jogar war. Eu não tenho mais ninguém. Oficialmente, na verdade, eu não tenho ninguém. Nem acho que iremos viver o suficiente para ver atribuírem alma aos 114 ou outras peças. Demoraram do mesmo jeito com os animais, as mulheres, os negros, o mickey. Um dia, com certeza. A Joana falou disso quando foi embora, eu não devia me apegar a esse tipo de amizade. Agora eu não tenho mais ninguém. Ele trabalha demais, eu sei, mas me traz sanduiches e não faz perguntas não operacionais. Nós temos evitado falar das versões atualizadas. Odeio lembrar que o Frank é Beta, que eu vou ter que procurar um emprego, trabalhar para nos sustentar, ser o homem da casa e tudo mais. Sabendo do perigo que é deixar meu querido sozinho. Sempre me lembro de como foi horrível aquele dia da limonada, a marca de tinta do "Beta filha da puta" que ele escreveu na testa antes de beber todo o copo nunca saiu toda. Não foi muito depois da Joana ir embora com um grupo de zumbis de circo. Ela disse "vem comigo" e eu não fui, eu não podia ir, nem era pelo Frank, não. O Frank é só um X-114 Beta. O meu problema é com esses mortos-vivos. A gente esteve lá, a gente viu que não há nada, mas eles insistem em querer fazer sentido, ter um propósito, essas coisas de quem ainda se ilude com o pós-vida. Sair por aí levando a alegria para as pessoas, carpe diem, frase de efeito e... porra...circo? Mas eu não sei se estou muito mais certo em sentar e morrer de novo, enquanto meus dentes - digo efetivamente - caem e minha pele definha, sem metáforas.

Eu não fui com a Joana e não foi pelo Frank nem pelos zumbis e o pó de arroz ou os malabares. Eu até ria quando um braço voava junto da bolinha, eu não fui porque tenho medo. Medo e preguiça. Dessa coisa de viajar em estrelas cadentes, de fazer sexo num motel na lua, de passear por cidades metonímicas e discutir o clima sentado na calçada com entidades divinas. Ela me manda postais de vez em quando. Num deles a Casa branca é de fato um país inteiro e os Smiths são realmente vários homens e mulheres chamados de Smith.
Estranho a campainha ainda não ter tocado. Meu vizinho sempre vem me pedir gelo a essa hora. Vestido naquelas ligeries, apertando quilos e mais quilos de gordura suada e peluda. Eu até gosto dele, esperava que hoje ele viesse com uma daquelas máscaras de sexy shop. Nada até agora.
O céu está bonito, mas sem novidades, a cidade se movimenta por entre os arranha-céus, se confunde e nos confunde, a que aresta nós pertencemos nessa roda viva cheia de neons e rachaduras nucleares. O próprio diabo entrou no mercado publicitário e se esforça pra manter uma boa relação com os que frequentam seu pub, pode-se vê-lo cumprimentando afetado os mais assíduos. Merdas acontencem, e aos montes, e a céu aberto e em tecnicolor francês. Vê-se por aí os olhos e camas de gato nos cartazes dos cinema, se é que você me entende. Talvez o Frank tenha razão, talvez a Joana tenha razão, talvez meu vizinho. Certo, então. Eu vou ao quarto e provo algumas calcinhas deixadas pra trás, uma branca, elástico rosa, sem rendinhas com um arco-íris estampado. De frente ao espelho eu espalho pomada branca pelo rosto. Eu caminho assim até a cozinha e espalho molho de tomate ao redor dos lábios, expremo cinco limões, duas colheres de açúcar e duas doses de vodka falsificada. Frank, meu querido, você sabia tudo, só não sabia a receita. Um brinde a Joana e aos Zumbis felizes do reino encantado. Você vai beber, lata de sardinha, vai beber tudinho. Isso, assim,
apague esse stand-by,
deixe o uniforme
e deite aqui comigo,
você ganhou peso, Frank, andou comendo fora? A culpa é toda sua seu beta filha da puta. Fique assim,
eu quero sentir seus fios desencapando.
Você gosta não é seu sacana? Adeus, Frank. Me desculpe. Não podemos ser eternos assim, não podemos. Me desculpe. Mas aqui tem coisa demais que nós nunca nem vamos tocar, vamos pôr uma música e dormir, Chopin? Está certo, não há nada onde você está indo, assim como não havia quando eu fui, não se preocupe em me esperar. Só me abrace, Frankzinho sua merda enferrujada de semên. Me abrace e termine de morrer.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O idiota

Depois de muitos outros, o idiota sobe ao microfone, não senta no banquinho preto, fixa o olhar na luz do holofote e tateia a eletricidade no microfone.

Boa noite - E leva um choque - Ah...porra... Er...Eu...eu me lembro bem de estar aqui.
Sim.
Eu me lembro bem de estar aqui e em todos os outros lugares onde eu poderia estar agora. Tenho essa sensação faz um tempo, não sei quanto não, mas eu não tinha ela quando era criança. O idiota baixa os indicadores, que encontravam-se erguidos ao lado da cabeça. Relaxa os ombros como quem desiste.

Muitas coisas me são assim. Eu sempre estive me perguntando se acontece com as outras pessoas. Não só com alguém mais, eu me refiro a todas as outras pessoas. Eu me refiro, por exemplo, ao momento exato em que eu percebi que existia. Vocês devem entender, essa coisa de existir e tudo mais. Tinha cinco anos e olhava para o chão, ouvindo a voz de alguma das minhas tias falando pra minha mãe. Era alguma coisa que eu não deveria estar escutando, mas que ninguém fazia muita questão de poupar dos meus ouvidos porque eu não entendia. Mas aí me vem novamente. Eu não entendia e ainda assim tinha aquela intuição, que hoje me é óbvia como conceito e não apenas instinto, de identificar segredos sem que fosse pedido para guardá-los. Alguma coisa que me faria chorar depois de esfaquear alguém ainda que por isso me viessem aplausos num vento que deveria me trazer reprovações. O idiota move os pés e balança o corpo, inquieto como se alguém contestasse uma certeza. Porque saibam, o que me impede de quebrar seus pescoços...reergue os indicadores - O que me impede de sair por este salão pisando suas cabeças e estuprando seus homens e suas mulheres não é, sob hipótese alguma, o medo daqueles guardas, não é de nenhuma forma o medo de sentir seus sapatos pressionando minha boca ensanguentada contra o chão. Muito embora seja isso que o que irá acontecer e muito embora eu toda a dor que disso virá, não é nem de longe esse temor que me impede. É... eu não sei, outra coisa.
E é disso que eu estou tentando falar, não são os fatos, não é o medo de estar sozinho. É a dúvida, minha vontade de ser qualquer outro e noutros corpos sentir inalcançável coceira na sola do pé, a TV ligada ainda que muda e sem imagem, a capacidade de se saber que está sonhando ou de criar mundos e episódios nas sujeiras das paredes, o espasmo da lembrança de um momento de vergonha, passar horas vendo nuvens brancas no céu azul e esquecendo todas as descobertas sobre o sentido de se estar aqui...
Não me basta que alguém levante a mão e diga já passei por isso, a não ser que esse alguém também possa trocar sua alma com a de meu corpo... O idiota baixa a cabeça e fecha os olhos, sob o palco a platéia entorta bocas, balança cabeças e troca olhares comentando a uma suposta obviedade em tudo o que foi dito. Um próximo sobe ao palco, senta-se e entrelaça os dedos. Sente envergonhado o calor da forte luz branca em seu rosto.

então senhoras e senhores, boa noite...