segunda-feira, 29 de junho de 2009

Moendo Moinhos

E os moinhos se moviam conforme o vento e o tempo. Moviam meu tempo. Arrastavam meus anos para embaixo de algum tapete alheio. Me mutilavam com seu constante movimento.
Eu preciso descansar. Preciso de um pouco de colo. O seu colo fica tão bonito assim visto por baixo. Com dor de cabeça. Com minha cabeça moendo. Movendo moinhos que pesam toneladas. Movendo amores impossíveis. Me pergunto onde estará meus dias perdidos movendo moinhos alheios. Onde estaria meus amores antigos. Onde estaria eu imersa em pensamentos alheios. Sobre anseios me jogo. Me arrasto, me enlaço. Caio em tédio. Mover. Minha vida cansa. Minhas pernas doem. Meus olhos precisam de águas passadas. Meu corpo precisa ser levado por essa corrente que me enlaça.
Meus moinhos. Meu tempo. Um vazio. De tempos em tempos movendo moinhos alheios. Sentindo falta de mim mesma. Imersa em pensamentos. Me perco em águas desconhecidas. E o vento me leva conforme sua dança. Eu perco. Eu ganho. Eu desapareço. Uma gota. Um moinho. E um sonho. Meu tempo. Minhas horas que escorrem. Preciso do seu colo para depositar nele todo o meu cansaço. Meus dias. O tempo caindo feito areia. Meus ombros doendo. O nosso tempo esvaindo.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Significar-se

Existe muito porquê nesse mundo, e existe muito porque não.
Determino só pouco de tudo,
mas o que segui pelo faro
tanto faz.
porque o meu pedaço de pôr do sol
emoldura o que posso dizer dele
apenas
e nada mais.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Hora Absurda

O teu silêncio é uma nau com tôdas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraiso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e
entanto
Tu és a tela irreal em que erro em côr a minha arte...

Abre tôdas as portas e que o vento varra a idéia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha idéia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora...É em mim...Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e tôda ela escombros dela...
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a idéia de nunca chegar a um pôrto...
A chuva miúda é vazia...A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!...Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Tôdas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias tôdas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E tôdas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudade de si ante aquêle lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos
candelabros...
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Por que me aflijo e me enfermo?...Deitam-se nuas ao luar
Tôdas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a idéia de naufragar,
E a idéia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões tôdas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes...Ainda
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alamêda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a idéia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um pôrto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos...pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar...Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Tôdas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Por que não há de ser o Norte e Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso...Fito-te...
E o teu silêncio é uma cegueira minha...Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua idéia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprêzo? Por que não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore...O teu silêncio é um leque ---
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram tôdas as mãos cruzadas sôbre todos os peitos....
Murcharam mais flôres do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncio eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta...Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir,
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de tôdas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de tôdas as terras,
Endireitar à fôrça a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã --- como

nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas côres de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro êste lema --- Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei...Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...


Fernando Pessoa

segunda-feira, 8 de junho de 2009

manhã

essa manhã...
nessa manhã como em
todas as outras eu
me esqueço o que eu achei

no mais
transtorno absoluto
em renegar
antes de levantar
todas as possibilidades
entre eu
entre o mundo.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Uma

Gostava de beijar-lhe a barriga lavada pela água do nosso banho, o sabor da água misturada ao seu corpo era um elixir para eu me deleitar.

Lembro dos olhos dela, que pareciam se mover em câmera lenta, semicerrados de prazer, firmes de tesão, me encaravam apaixonadamente, e enquanto o momento me entorpecia e hipnotizava, ela me perguntava, suavemente, com sua boca molhada: “O que é?”.

Discutiríamos por conta dessa situação algumas horas mais tarde, pois eu nunca conseguia dizer “o que era”, não era capaz de emitir um silvo que seja em resposta, nem que eu conseguisse obter algum som, jamais me depararia com as palavras necessárias para descrever a sensação do magnetismo exercido por seus olhos, no momento em que nos amávamos.

Enquanto fazíamos amor, nossas mãos estavam sempre juntas, os dedos enlaçados pelo fio invisível e inviolável de nossa união. Aquele era o nosso momento, falassem o que falassem. Às vezes ela chorava, e então eu quem perguntava, mordendo-lhe a orelha: “O que é?”. Beijando-me, com as lágrimas nascendo em seus olhos e morrendo após deslizar docemente pelo meu rosto, ela dizia: “Choro porque, um dia, iremos nos separar, a morte está aí para isso. Choro porque sei que, de uma forma ou outra, uma de nós ficará só e estou chorando ou por mim, ou por você...”

Nunca tive medo de estar só, ela estava errada. Não só amigas, confidentes, irmãs ou cúmplices. Éramos uma só. Enquanto dávamos as mãos, eu e ela, juntas, nos amando, éramos uma só pessoa, se unificando, ou seja, juntas, estávamos sempre “sozinha” e “feliz”, como um indivíduo em sua forma original, ou seja, completo.

Por isso que, quando ela se foi, eu já havia me decidido por ir embora também. Não com medo de ficar só, mas porque um ser humano não sobrevive incompleto.



Adeus.


Sarah Elise