sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Palhaço na lua

"Minhas lágrimas são como a brisa suave
de pétalas d'alguma rosa mágica;
e toda tristeza vem da caverna
de esquecidos céus e flocos de neve.

tenho pra mim que caso eu tocasse a terra
ela se desfaria.
É tão belo e melancólico,
tão tremendamente onírico"

Dylan Thomas

Dizendo tudo

"O meu processo criativo consiste numa ininterrupta construção e destruição de imagens saídas do âmago central, ao mesmo tempo, destruidor e construtor."

Dylan Thomas.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Abrindo portas sem mescalina.

Vou me trocar em miúdos ali atrás porta do banheiro social. Você não verá, não hoje, que está muito óbvio. Hoje nós vamos apenas olhar para o céu e eu vou te dizer que no meu mundo perfeito existe sempre uma antena cortando o firmamento. É belo como a foto que você tirou de pescoço estirado para cima e olhar estirado sabe lá deus para que vácuo. Se você quer compreender apenas admita que a unha do seu dedo mindinho do pé está tão existencialmente preocupada quanto o nosso cego e arrogante "eu". Assim todas essas antenas ganham um ar de quem observa permanente a impermanência inevitável das nuvens púrpuras da noite escura. E você aí pensando que entidade invisível escrita em que livro sagrado rege o seu destino. Pergunte a elas como é ser levado pelo vento de um horizonte a outro, numa lentidão que dá a certeza do despropósito, apenas pra servir de cama para o sol. Mas não deve haver espanto quando a voz de uma nuvem se desfizer na voz aguda de infinitas partículas subatômicas que abrigam sim um universo em cada uma. Quando percebermos que se lilipute pode estar num grão de poeira do nosso livro menos lido, existem ainda muitas bibliotecas empoeiradas nas esquinas de lilipute.

E é por tudo isso que eu não chateio os bonecos da minha estante tecendo a ponto cruzado considerações sobre a incapacidade do meu próximo de entender que qualquer um é capaz de dormir com o cabelo azul e acordar encarando a própria alma preparando um misto quente na cozinha de casa. Imagine então a insignificância que é mudar de opinião sobre a combinação de roupas de um alguém tão conhecidamente indeciso como o amor, perante o sacrifício bíblico que representa a atitude da antena.

A morte sem nome

"A gente leva uma vida tão solitária e acha que precisa completar.
Que bobagem! A gente leva uma vida tão solitária que eu achava que precisava de algo mais. Onde estava? Correndo nas minhas veias, pulsando em meu corpo, paixão e hormônios que me levavam do amor à decepção, passando por todo o tipo de doenças. Que bobagem! Poderia completar sozinha, com meus próprios dedos. Poderia cozinhar sozinha com minhas próprias mãos. Poderia tomar banho enxaguar o cabelo, esfregar o chão e virar a garrafa de vodca sem ajuda de ninguém. Por que procurei? Para assistir, para ver seus belos olhos nos meus, para refletir minha ansiedade nos seus belos, belos, belos olhos que nem azuis eram."

Santiago Nazarian

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A víscera do universo.

E então, após queimar todos os apartamentos de cada um dos cinco andares do condomínio mais central da cidade, caminho pela rua vazia e escura. uma ainda penteia-se frente ao espelho, por entre o fogo, outro apenas observa pela janela. não há gritos, apenas o crepitar dos trinta anos abrigando depressões, todos os seus fantasmas recentes e enlouquecidos pela solidão dos quartos pequenos, sujos e transtornados.
Sempre podemos sentí-las, almas que continuam sua vida na nossa. por isso, não se ouve uma voz. liquefaço-me, escorro pelos bueiros abaixo e carrego comigo todos os descartáveis papéis, lágrimas e abortos. levo tudo o que ninguém quer, diluo, dissolvo, misturo e devolvo.

já a chuva é ácida e a pele impermeável. meu corpo se estira no asfalto. no céu estira-se um lindo dia de sol branco. abrem-se as portas e cruzam-se os corpos. olhos, olhos, olhos e o chão rachado, apático me transmite calor, doenças e o dia de ontem. o chão não consegue dormir e a terra guarda rancor do pé que a pisou. ouve-se as máquinas mas não se vê.
a engrenagem se contorce como os dedos cruzados de minhas mãos sobre o meu peito. já estive frente as câmeras, me dividi em infinitos pedaços e fui jogado aos céus para voltar como uma massa vazia dentro da televisão. direto para seus olhos e eles direto para seu prato.

enquanto isso, por entre as engrenagens de meus dedos, passeia o verme.

esse carbono que sou faz aniversário de mais uma eternidade, sabendo ser isso apenas parte de uma vida sem infância, apodrecimento e morte. ego sum qui sum. porque nunca fui, nem nunca serei. sou, apenas.

2+2=5

"Você é tão sonhador a ponto de pôr o mundo nos eixos?
Eu vou ficar em casa
para sempre
onde dois mais dois
é sempre igual a cinco

Eu vou baixar as faixas
os sacos de areia
e me esconder.
Janeiro tem as águas de abril
e dois mais dois
é sempre igual a cinco."

[...]

Thom Yorke, claro.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ir dormir.

Todo dia acordo-me pra fora, como quem emerge das alegrias do inferno. Onde queimam-se todos os erros que eu gostaria que você cometesse. E eu me livraria de todas as culpas. Mas tudo só dá errado em sonhos. Aqui fora vai tudo insuportavelmente bem, eu ainda seguro todos os meus demônios atrás dos meus olhos e os levo para passear entre os carros durante os finais de tarde.

Porque não queremos que outro monstro dê opinião.

Mas eu posso estar errado, ainda que possa jurar que essas estrelas que caem são as que mais brilham. Agora que estou acordado, vamos nos enganar. Eu prefiro manter parado o meu corpo, já que não posso impedir os planetas do meu universo de girarem. Eu posso ouvir, e posso observá-los, mas eu não vou dançar.

Porque não queremos que os loucos tomem o controle.

Então agarrem-me em meu sono, me amarrem e deixem sob a água. Pois se não sabemos viver entre o sonho e o surreal, abro minha mão para manter apenas um pássaro. Que com os dois, não me sinto voando.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ignore

Vou vomitar um pouco. Então não ponha os meus talheres. Não me reserve aquele lugar na mesa. Chame algum amigo seu. Alguma amiga mais íntima. Hoje eu estou intragável. Então não me beije. Não me olhe assim. Apenas não me abrace como de costume ou tente fazer graça com as mesmas piadas. Não tente fazer graça nenhuma. Porque hoje eu vomitei nos meus próprios pés. E continuo com essa ânsia. Esse mal estar. Esse mal estado. Sentada em uma cadeira qualquer quero passar o resto desse instante. Eu acho que tenho esse direito.
Sinto muito por não poder contribuir com seu sorriso hoje. Por apagar um pouco o seu brilho. Não queria chamar atenção. Apenas me reservei pra hoje. E não quero jantar o meu próprio vômito. Não insista em por a mesa no ângulo que eu gosto. Não se importe de colocar as flores visíveis. Melhor, nem compre flores. Ando um tanto enjoada de perfumes. Ando um tanto enjoada. De tudo um pouco em muito me enoja.
Eu concordo que o esforço é inútil, quando não se tem compensação. E hoje estou assim descompensada. “Uma loucura leve e doce faz bem de vez em quando.” Me disseram isso quando a sala se inclinava para atingir um novo ângulo. Um novo ponto de vista. Uma nova vista. E a conversa muda de assunto. Ou se muda a conversa pra se iniciar uma discussão. E não quero realmente isso. Esse falatório todo. Essas vozes invadindo o meu silêncio. Tentando colocar explicações na minha vida “errante”. Não se pode isso e aquilo se não fizer o outro.
Acho que deliro. É só um delírio, sim. De certa forma sempre foi. O que não é real pra você, faz todo o sentido pra mim. E não só isso. Aquilo também é importante. Não vou me colocar a prova... não me coloco em prova por qualquer pouca coisa que seja. Intensamente. Preciso que me diga que isso não é mais só eu. E que você entende perfeitamente o que quero dizer. Essa falta de sentido talvez me faça sentir importante quando escuto “eu entendo.”. É simples. Eu nunca disse que seria completamente complicado.

Nova ordem

Tudo está onde deveria estar
o mundo abrindo seus olhos de vidro
todo azul sobre telhas e nuvens
o olhar lento
e o estômago vazio

Pudesse eu queria desgravitar
desse azulejo branco
falava merda nos planetas pra perturbar
e em saturno um novo encanto
Dos últimos andares eu me contento
em cuspir no cidadão de bem
só de mau
pra me sentir além de qualquer sinal
desses de transitar.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Apocalipse armorial

Põe no sol o teu vestido de festa
que acenderam luz lá na praça
e hoje vais dançar
amarelando o mundo em poeira
de juízo queimado
e pedaço de pé
na terra seca
do dia de todo final
sangrado de fé.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Da condição de idiota

Não apenas de idiotice vive o idiota, mas de toda faísca de tédio que o ilumina. Pode se perceber, então, que aquilo tudo que se fez nem era preciso. Talvez não fizesse diferença o estresse em parecer atraente, em mostrar-se sempre vivo em comentários e ações. Não foi na busca de sobressair-se que o pequeno sentiu-se grande e que o opaco brilhou como nunca. Não foi no esforço em fazer coisas notáveis, que se encontrou o desejado reconhecimento.

Desnecessário acompanhar as últimas tendências, em cento e vinte e cinco canais. Nada além de inútil escutar todos os últimos álbuns mais tocados da semana. Porque quando há uma escolha pela quantidade, não há tempo suficiente. Não se degusta. Além do mais, a admiração dos outros se vai rápido como todo crepúsculo e deixa sempre o idiota só, precisando fazer tudo de novo, a introduzir-se incansavelmente no ciclo de conquista de sorrisos amarelos.

Ele acha que é especial, que sua existência faz diferença para a continuação da vida na Terra. Ele se julga capaz de grandes feitos, de transformação brutal do que há de errado e feio no mundo. Mal sabe ele que se capaz for de procurar em si seus bons três acordes melódicos e repeti-los; suas boas cinco frases de efeito e guardá-las para si; sua combinação de passos dançantes; suas misturas exóticas de desejos inadmissíveis; talvez, com muita sorte, esteja salvo. Ele não faz idéia que a boa arte só realmente entendida por quem a faz.

O tédio o aproxima de si. Permite analisar com mais calma o sabor de suas ações. O que ele tanto se preocupa em conseguir é realmente digno? O que faz bem? Apenas no tédio, o idiota se permite parar de correr e girar a roda de sua gaiola. A tontura diminui aos poucos. E vê, que para sua terrível surpresa, que não há ninguém assistindo. Ninguém presta a menor atenção em seus árduos esforços de ser uma estrela cadente.

O idiota não sabe que é apenas sombra, como todos os outros. Ele, às vezes, desconfia, mas faz de tudo para esquecer a possibilidade. Sombra que se vai rápido, que não se conhece, nem pode. Envolvida está em despertar o interesse alheio, em ser amada e aceita. E isso leva tudo. Não sobra nada que a idiotice para o idiota.

Hans

Hans era um zumbi alemão que vivia no centro da cidade. Haviam grandes telões nas paredes dos arranha céus, exibindo amostras nonsense de pesadelos vídeo- musicais, celebridades mortas e noticiários, sob um noturno céu multicolorido e movimentado, marcado por aquarelas permanentes em forma de fogos, penetrado por antenas iluminadas com neon, rasgado por espaço- naves, estrelas e anjos cadentes e orações via satélite. Ainda que misantropo, Hans não tinha consciência de sua própria condição. Ainda que Joana ainda não tivesse partido, já se sentia sozinho.

Não há muitos registros de relações harmoniozas entre meio-mortos e artificialmente vivos, mas os vizinhos dizem que Frank já era como que da família, as línguas más-soltas afirmam até que não só era membro integrante como necessário. Hans não trabalhava e Joana era zumbi de circo. Frank operava telemarketing.

Fazia pouco menos de um mês que se podia ver o encontro diário dos artistas do Mondo (I)real no galpão abandonado, havia pouco tempo que Joana encantara-se pelo percussionista da banda e decidira aprender acrobacias, malabares e receitas veganas. Por vezes, entre uma pirueta e outra, podia-se ver uma perna voando ou um olhos virados, mas todos eram conscientes, sorridentes, equilibrados. O vizinho do 512 sempre descia para oferecer suco, vestido com alguma lingerie, ainda que comportada.

A noite em que Joana foi embora foi dessas de céu muito preto e luz muito clara. A imagem de Hans sentado nas escadas segurando os rubros globos oculares nas mãos não era de difícil reprodução, rodeado de papéis de panfletos, jornais e embalagens de metanfetaminas, enquanto Frank subia e descia os lances numa aparente pane de sistema. Joana lá fora, guardava os malabares na Combi colorida, entre sorrisos, soluços e engasgos.
- Você realmente não quer vir?
- Mas como?
- Ele é só uma porra de uma lata, Hans.
- Fala baixo.
- Eu só quero que você saiba que isso aqui não é o fim, que nossos corações não batem, mas se encontram quando nos abraçamos.
- Se for pra falar essa merda, vai logo.
- Eu vou te mandar pensamentos felizes.
- Ai, caralho.
E assim ela se foi, deixou pra trás uma porta inteira do guarda-roupa ocupada de roupas e esperança. Nunca voltou. Mesmo depois que o movimento se acabou e a tenda criou mofo. Só chegaram postais.
Hans colocou os olhos de volta nas órbitas, tirou a cabeça de cima do pescoço e a manteve pressionada contra o peito por três dias até que finalmente decidiu subir ao seu apartamento.

A morte-e-vida de Hans não ia muito além das paredes do prédio, cuidava de sentir falta, manter a sobrevivência. O noticiário anunciara a substituição dos modelos beta o mais breve possível e desde então criou-se certo desconforto social com a inquietação de todos os X-114, Frank desenvolveu paranóia, depressão e um desolador quadro esquizofrênico. Tentou suicídio de diversas formas, desde a ingestão de líquidos fatais como limonada até o vazamento proposital de fluido. Consta que Hans fez o possível, que Frank duraria, que tudo daria o que deveria dar.

O laudo médico, mecânico e policial daquela noite despertou horror durante três minutos do noticiário. Foram encontradas as roupas de Joana jogadas ao chão, comentam que Hans vestia uma delas durante o maquinocídio e que Frank foi sexualmente violentado após sua morte. Essa manhã muitos robôs e zumbis saíram em passeata em prol do movimento de humanização das máquinas inteligentes.

hidioteca.blogspot.com/2009/12/idioteca.html

http://vidadebolso.blogspot.com/

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Dare

Me ser é dançar
no escuro só com a luz do stand by
apertar os olhos e me ter a pular no espaço de lua em luar
em estrela
entre radio-transmissões
colhendo crenças, conspirações e chás gelados para corações partidos
de carona no nosso eu
ao fim da música eu vou parar.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

budistas

Ainda há essa gente que corre mais que o mais possa correr
pra ir buscar um sentido, uma razão, um ser
seu próprio.
sentindo nos calcanhares tudo o que miram o olhos
e trazem de volta significados para palavras já ditas
como que desdizendo-as ao pintar nova aquarela com as mesmas cores da antiga.
Tudo simplesmente pela arte, e ela por ela própria e mais ninguém.
Não me apercebo se seu horizonte tornou-se vertical.
Mas te sigo por todo o teu caminho de ida e de volta e de revolta sem repetir qualquer traçado fora do meu concreto ou do raio das minhas antenas.
te sugo a ti e a outros tantos quanto meus poros possam equivaler
Ao te devorar deixo no prato os restos que expulsariam minha essência.
Logo te tornas o que me torno e não te percebo mais em mim.
Te troco
mas apenas te uno a outro
assim me torno o mundo
pois meus contáveis sentidos
são apenas portas para o infinito.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A rua de casa.

Enquanto estou aqui esperando amanhecer, nunca deixo aquela rua. Nem vou deixar..Quando numa noite dessas eu estiver de passagem - ou de volta - e me encontrar. Quero ter um Band-aid pra me entregar e por no meu dedão. Algum conselho a receber.

Da minha janela eu não consigo ver agora. Mas sei que estou ali sob o poste solitário de luz amarelada, sentado na calçada, brincando com as pedras pequenas que já brotam do asfalto. E dessa noite, por mais que eu veja nascer o sol de Manchester ao Tibet, nunca sairei.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O marinheiro Ian

Esperanza para a terra,
Esperanza para a terra.

Eu queria alguém para quem cantar. Mas vocês parecem tão longe que até parecem o passado. Eu sei que estão aí, presentes, cada um é o próximo do outro e é amado como a palavra manda ser. Eu não me sinto mais o próximo de ninguém. Esse céu amarelo queimado de luz morrente, não é de Deus, não. Porque se fosse Dele tinha um passarinho, tinha passarão, e como tudo que se compre na omnisciência, o passarão come o passarinho. Aqui, o homo não sapiens nem habilis nem mortuo. Eu não lembro porque não sei nem nunca soube ou um dia saberei. Esperanza para terra, nós chegamos. Aqui se descansou no sétimo dia, nós descansaremos até o que veio depois do segundo milésimo dos anos. Nós chegamos e não sabemos se queremos ficar ou como sair. Eu acho que iremos apenas ir. Eu deixo amores para fazer companhia aos meus beijos que ficaram, mas não mando lembranças nem qualquer outra coisa porque elas e tudo o mais já ficaram aí. Mando palavras para meus desamores, pois é só o que me resta, mas já não presta pra nada. É apenas para que não esqueçam. No embrulho das palaras vai um pedacinho da lua, ou pelo menos o que eu acho que o seja. Peço que coloquem ao lado do meu coração quando ele parecer apaixonado e, quando acontecer, que a dêem a ele um violão. Dia desses acordei pensando nas saudades que deixei, mas não tenho nada para mandar pra elas. Mas se elas ainda morarem lá em casa, eu queria que lembrassem a chave e a fechadura pra depois que se casarem, guardarem a minha mãe. O Timoneiro Ivan disse que mães são coisas sagradas, então é melhor guardar a minha pras saudades não ficarem brincando com ela, pode quebrar.

Daqui há muito o que se dizer, mas nada deve ser dito.
Devo ter deixado meus desejos dentro da gaveta mais baixa do guarda roupa, lá deve estar o desejo de que vocês encontrem todo o amor que O Poeta disse que a humanidade precisa, ou que alguém descubra uma terra boa para plantá-lo.

O marinheiro Ian

Esperanza para a terra,
Esperanza para a terra.

Eu queria alguém para quem cantar. Mas vocês parecem tão longe que até parecem o passado. Eu sei que estão aí, presentes, cada um é o próximo do outro e é amado como a palavra manda ser. Eu não me sinto mais o próximo de ninguém. Esse céu amarelo queimado de luz morrente, não é de Deus, não. Porque se fosse Dele tinha um passarinho, tinha passarão, e como tudo que se compre na omnisciência, o passarão come o passarinho. Aqui, o homo não sapiens nem habilis nem mortuo. Eu não lembro porque não sei nem nunca soube ou um dia saberei. Esperanza para terra, nós chegamos. Aqui se descansou no sétimo dia, nós descansaremos até o que veio depois do segundo milésimo dos anos. Nós chegamos e não sabemos se queremos ficar ou como sair. Eu acho que iremos apenas ir. Eu deixo amores para fazer companhia aos meus beijos que ficaram, mas não mando lembranças nem qualquer outra coisa porque elas e tudo o mais já ficaram aí. Mando palavras para meus desamores, pois é só o que me resta, mas já não presta pra nada. É apenas para que não esqueçam. No embrulho das palaras vai um pedacinho da lua, ou pelo menos o que eu acho que o seja. Peço que coloquem ao lado do meu coração quando ele parecer apaixonado e, quando acontecer, que a dêem a ele um violão. Dia desses acordei pensando nas saudades que deixei, mas não tenho nada para mandar pra elas. Mas se elas ainda morarem lá em casa, eu queria que lembrassem a chave e a fechadura pra depois que se casarem, guardarem a minha mãe. O Timoneiro Ivan disse que mães são coisas sagradas, então é melhor guardar a minha pras saudades não ficarem brincando com ela, pode quebrar.

Daqui há muito o que se dizer, mas nada deve ser dito.
Devo ter deixado meus desejos dentro da gaveta mais baixa do guarda roupa, lá deve estar o desejo de que vocês encontrem todo o amor que O Poeta disse que a humanidade precisa, ou que alguém descubra uma terra boa para plantá-lo.