sábado, 21 de novembro de 2009

Vida de bolso

Quando saiu de casa tudo que queria era um cachorro quente
e a TV mandava nunca mais jantar.
Não tenho desses dias que se passam em fotografia
do pôr-do-sol
e certamente não duro mais de um mês ouvindo Tom
Jobim ou Zé.

Saiu de frente pra um apartamento, emprego, filho
casamento,
e num domingo - dessas horas tão mortais - foi se hospitalizar

E então minha melhor amiga vem a ser
a máquina de hemodiálise
mas entre tantas vidas que se lê
não sei nem quando eu vou voltar
E entre raios e estímulos - tão vitais -
eu peço um disco voador
e eu não desço mais.

http://vidadebolso.blogspot.com/

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Relógio biológico

Abro os olhos pela manhã e por vezes, não consigo mover-me. Você entende que sua alma precisa sair de você. Mas que por vezes você acorda sem dever. Assim, sem querer. Apenas não se mexe e o seu redor parece tão imaterial, como se de fato o fosse. Hoje eu simplesmente levantei e fechei o quarto por mero reflexo, como que por curiosidade, acuamento. Uma primeira chance de me proteger. E eu a tive atrás da porta, imóvel e gélida. Indecisa. E eu não podia fazer, sentir. Não podia. Por ser tudo tão vazio, pela primeira vez entendi meus 55 kilos em 1,70 de altura. Ela é dez vezes mais pesada. Mais forte do que se verá no meu caixão. Eu entendi a textura da paredes, entendi o frio dos lençóis, mas não, não senti um só calor, nem da minha cama, nem do poema de Dickinson naquele livro aberto sobre ela. E eu a ouvia atrás da porta, volátil. Cada tic do relógio era apenas a deixa do tac, esse minuto, uma repetição do sessenta segundos anteriores. Meu estômago vazio, como nunca havia estado, de um estranho vácuo. A ser preenchido pela mais saborosa massa ou pela mais insossa pedra, sem perdas nem danos. Percebi que poderia estar perdendo os entes mais queridos das mais violentas e desesperadoras formas e podia ser o culpado por todas elas. Repetiria o ato repetidas vezes sem perdas nem danos. Sem remorsos. Mas tinha calafrios ao imágina-la atrás da porta, estática e impassível. Quando cortei minha pele, houve dor, sim. A mais aguda e sincera dor, o mais vermelho e primitivo sangue, ainda assim, cortaria quantas vezes achasse conveniente. Já não entendo o porque de ter fechado os olhos, mas só quando os abri, senti os ferimentos, com toda a culpa e vergonha. Com todo o calor, como se aquele arrepio de sentí-la do lado de fora fosse algo de uma distante noite passada. Tive instintos e desespero ao ver todo aquele sangue derramado, a vontade de que aquilo nunca mais ocorresse, o medo e a curiosidade por aquela completa ausência de sensações, algo que só agora percebia. O torpor. Precisava de janelas abertas, algodão e álcool, esparadrapo e acima de tudo, o toque e calor, o cheiro de outro ser, outro corpo, outra alma.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Doce Enchente

Um cheiro doce. Uma nuvem. E uma menina a brincar na rua. Na lama a identidade de alguém escorria. E era noite como todo dia. Uma lua. Uma chuva ali. A casa dos ratos fora destruída por enchentes. E uma família qualquer dormia. E a menina girava ao redor de uma árvore. As memórias de um alguém cambaleavam. Enquanto choviam doces na rua. Ou escorriam pelas calçadas. Um caminhão tombara horas antes ali. Havia doce demais pra alguém se lembrar. Já era tarde demais pra alguém se importar.
Uma rosa girava ao redor de um pequeno monte de lixo. Tentava cantar. Tentava dançar. Girar. Girar. Até alguém vomitar. Vomitaram as lembranças e ela parou de girar. Já não fazia sentido. E a rosa que segurava sua boneca, achou no lixo explicações para a chuva. Era apenas fantasia de uma menina de rua. Era apenas uma boneca com os cabelos desgrenhados. Aquela de olhos arregalados e boca cerrada. Aquela que podia se chamar Lorena. Luana. Letícia. E ninguém saberia.
Uma a mais. Uma a menos. Pedindo esmola. Sujando as ruas com seus passos. Enchendo a cidade. Com pés descalços. Com pés sangrando. As ruas sujando. Ninguém limpou suas fraldas quando nasceu. Nem ela chorou por isso. Nem haveria porque chorar. Era uma menina grandinha saberia suportar o próprio peso. A falta de peso. Magricela. Olívia. Olga. Alguém que ela fantasiava ser. Menina. Mulher. Carregava a filha. A boneca que tinha nome. Que era mais alguém que ela própria.
Olívia. Lorena. Letícia. Olga. Luana. A menina girava e tentava se entorpecer com o cheiro do álcool alheio. Com a cidade fazendo sombra e se inclinando sobre ela. Era como se fizesse parte daquele cenário. Um prédio. Uma árvore. Algo que não falava. Gemia. Sentia. Uma boneca carregando outra mais humana. A cidade lhe ouvia. Os seus grunidos. Os prédios rangiam. Respondiam. E ela seguia dançando. Andando. Balançando o corpo até ele pender em algum canto.
Parecia feita de pano. Concreto armado. Janelas de vidro. Prédio tão alto que não arriscaria olhá-lo por tanto tempo. E tempo correndo em forma de dinheiro, quando era dia. E a cidade inteira se enchia de papéis. Panfletos ao chão. Mulheres produzidas. Em larga escala. Em série. Andavam. Pessoas esbarravam no seu corpo e nem sentiam. Pois o tempo corria. “Parar é desperdício. Cada um tem seu ofício.” Homens de gravata. Mulheres perfumadas. E ela tão desgastada estava. Vestido velho demais pra se encontrar em vitrines.
Os seus dias não passavam. Ela não saberia seus anos. Nem o ano em que estava. Os sapatos já apertaram. E ela os jogou numa esquina. O vestido já não era longo. Mostrava suas pernas finas como galhos. E ela girava como folhas. Com o vento passando. Seus dias voando. Inconsciente. Inconsequente. Inconsistente. Envelhecia. Criava rachaduras. Sorriso amarelado. Unhas quebradas.
Ana. Paula. Joana. Carolina. Ela não sabia ao certo. Nem nunca saberia. Morreria. E todos ouviriam em um canal qualquer. Aquela seria apenas mais uma Maria. Uma Maria que escorria como chuva em telhado. Uma Maria que se derramava em noites que choviam doces. “Enchentes sempre causam acidentes”. Mas ela nunca aconteceu.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Meias limpas

Você vê que nós construímos um deserto aqui, certo? Eu entendo que ele não é lá grandes coisas, mas ele é nosso. É dessas coisas pra se carregar no peito e fazer uma oração:

"Querido Senhor, este é o meu deserto, não faz jus ao reino dos céus ou terra, mas é meu".

Entendo que é apenas um monte de nada, sem razão, sem significado, mas muito foi dito aqui para que se tenha chegado a isso. Verdades foram ditas. E só a mais pura verdade para criar um abismo tão grande entre nós. Agora os dinossauros já têm onde caminhar livres, onde eu me encerro e você toma a vez.
Pode ser que seja apenas comigo, talvez seja por alguns sonhos, talvez os sonhos sejam por se ser o que é. O fato é que eu tenho vivido constamente num quadro de Monet, sob esse imenso céu de baunilha, com o meigo conforto que me traz ver meias limpas. De forma estranha eu começo a me personalizar, assim, de forma a ficar bem, me resumir, me pôr no meu lugar. Ao longo de todas essas paradas e terminais, em meio a todos esses que me ouvem ou que me falam. Eu não me preocupo por não levantar monumentos e imensas torres, nem em encher olhos, especialmente esses olhos que me olharam durante toda minha vida e ainda assim não me vêem.

Eu acordo aos sábados de manhã e minha cabeça ainda não envia uma mensagem automática para que eu procure meus sapatos, mas eu sei que isso, mais cedo ou mais tarde, não será mais problema. Assim como nessas paradas e terminais, eu irei apenas andar. Para o trabalho, para o acidente, para um outro plano.

Relendo as mensagens nas contra capas dos cadernos, eu não sinto mais a dor de antigas quedas. Eu vou apenas perdendo as sensações, perdendo as reclamações, ignorando todas as minhas visões, por fim.
Construindo meu deserto.