segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Doce Enchente

Um cheiro doce. Uma nuvem. E uma menina a brincar na rua. Na lama a identidade de alguém escorria. E era noite como todo dia. Uma lua. Uma chuva ali. A casa dos ratos fora destruída por enchentes. E uma família qualquer dormia. E a menina girava ao redor de uma árvore. As memórias de um alguém cambaleavam. Enquanto choviam doces na rua. Ou escorriam pelas calçadas. Um caminhão tombara horas antes ali. Havia doce demais pra alguém se lembrar. Já era tarde demais pra alguém se importar.
Uma rosa girava ao redor de um pequeno monte de lixo. Tentava cantar. Tentava dançar. Girar. Girar. Até alguém vomitar. Vomitaram as lembranças e ela parou de girar. Já não fazia sentido. E a rosa que segurava sua boneca, achou no lixo explicações para a chuva. Era apenas fantasia de uma menina de rua. Era apenas uma boneca com os cabelos desgrenhados. Aquela de olhos arregalados e boca cerrada. Aquela que podia se chamar Lorena. Luana. Letícia. E ninguém saberia.
Uma a mais. Uma a menos. Pedindo esmola. Sujando as ruas com seus passos. Enchendo a cidade. Com pés descalços. Com pés sangrando. As ruas sujando. Ninguém limpou suas fraldas quando nasceu. Nem ela chorou por isso. Nem haveria porque chorar. Era uma menina grandinha saberia suportar o próprio peso. A falta de peso. Magricela. Olívia. Olga. Alguém que ela fantasiava ser. Menina. Mulher. Carregava a filha. A boneca que tinha nome. Que era mais alguém que ela própria.
Olívia. Lorena. Letícia. Olga. Luana. A menina girava e tentava se entorpecer com o cheiro do álcool alheio. Com a cidade fazendo sombra e se inclinando sobre ela. Era como se fizesse parte daquele cenário. Um prédio. Uma árvore. Algo que não falava. Gemia. Sentia. Uma boneca carregando outra mais humana. A cidade lhe ouvia. Os seus grunidos. Os prédios rangiam. Respondiam. E ela seguia dançando. Andando. Balançando o corpo até ele pender em algum canto.
Parecia feita de pano. Concreto armado. Janelas de vidro. Prédio tão alto que não arriscaria olhá-lo por tanto tempo. E tempo correndo em forma de dinheiro, quando era dia. E a cidade inteira se enchia de papéis. Panfletos ao chão. Mulheres produzidas. Em larga escala. Em série. Andavam. Pessoas esbarravam no seu corpo e nem sentiam. Pois o tempo corria. “Parar é desperdício. Cada um tem seu ofício.” Homens de gravata. Mulheres perfumadas. E ela tão desgastada estava. Vestido velho demais pra se encontrar em vitrines.
Os seus dias não passavam. Ela não saberia seus anos. Nem o ano em que estava. Os sapatos já apertaram. E ela os jogou numa esquina. O vestido já não era longo. Mostrava suas pernas finas como galhos. E ela girava como folhas. Com o vento passando. Seus dias voando. Inconsciente. Inconsequente. Inconsistente. Envelhecia. Criava rachaduras. Sorriso amarelado. Unhas quebradas.
Ana. Paula. Joana. Carolina. Ela não sabia ao certo. Nem nunca saberia. Morreria. E todos ouviriam em um canal qualquer. Aquela seria apenas mais uma Maria. Uma Maria que escorria como chuva em telhado. Uma Maria que se derramava em noites que choviam doces. “Enchentes sempre causam acidentes”. Mas ela nunca aconteceu.

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