terça-feira, 17 de novembro de 2009

Relógio biológico

Abro os olhos pela manhã e por vezes, não consigo mover-me. Você entende que sua alma precisa sair de você. Mas que por vezes você acorda sem dever. Assim, sem querer. Apenas não se mexe e o seu redor parece tão imaterial, como se de fato o fosse. Hoje eu simplesmente levantei e fechei o quarto por mero reflexo, como que por curiosidade, acuamento. Uma primeira chance de me proteger. E eu a tive atrás da porta, imóvel e gélida. Indecisa. E eu não podia fazer, sentir. Não podia. Por ser tudo tão vazio, pela primeira vez entendi meus 55 kilos em 1,70 de altura. Ela é dez vezes mais pesada. Mais forte do que se verá no meu caixão. Eu entendi a textura da paredes, entendi o frio dos lençóis, mas não, não senti um só calor, nem da minha cama, nem do poema de Dickinson naquele livro aberto sobre ela. E eu a ouvia atrás da porta, volátil. Cada tic do relógio era apenas a deixa do tac, esse minuto, uma repetição do sessenta segundos anteriores. Meu estômago vazio, como nunca havia estado, de um estranho vácuo. A ser preenchido pela mais saborosa massa ou pela mais insossa pedra, sem perdas nem danos. Percebi que poderia estar perdendo os entes mais queridos das mais violentas e desesperadoras formas e podia ser o culpado por todas elas. Repetiria o ato repetidas vezes sem perdas nem danos. Sem remorsos. Mas tinha calafrios ao imágina-la atrás da porta, estática e impassível. Quando cortei minha pele, houve dor, sim. A mais aguda e sincera dor, o mais vermelho e primitivo sangue, ainda assim, cortaria quantas vezes achasse conveniente. Já não entendo o porque de ter fechado os olhos, mas só quando os abri, senti os ferimentos, com toda a culpa e vergonha. Com todo o calor, como se aquele arrepio de sentí-la do lado de fora fosse algo de uma distante noite passada. Tive instintos e desespero ao ver todo aquele sangue derramado, a vontade de que aquilo nunca mais ocorresse, o medo e a curiosidade por aquela completa ausência de sensações, algo que só agora percebia. O torpor. Precisava de janelas abertas, algodão e álcool, esparadrapo e acima de tudo, o toque e calor, o cheiro de outro ser, outro corpo, outra alma.

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