quarta-feira, 28 de abril de 2010

Atravessado

Não era minha primeira opção, mas eu escolho a sombrinha pra me equilibrar na corda bamba que é a linha da evolução. Sigo como pioneiro entre os macacos-poetas e desço dos postes da minha cidade. Desço como muitos já desceram da torre de marfim, ainda que com uma mala pesada. E desço a rua.

Quando Davis é injetado dentro do meu juízo pelo fone de ouvido eu sinto que realmente desço a rua. Ao lado de exaustos e depressivos carros em fim de expediente. Se comportam como se estivessem atrasados para chegar onde simplesmente não têm nenhum compromisso marcado, só pra provar que não faria sentido dormir no emprego.
O sinal abriu e todos nós descemos a rua.

Meu passo é incerto porque não piso nas linhas das calçadas, não por paranóia maníaco-depressiva, só por excesso de infância mesmo. Pelo aspecto das construções da minha cidade tive de mudar algumas regras da brincadeira ou senão simplesmente fincaria os pés em algum único ponto imaculado de onde piso e lá criaria raízes e um conto Kafkiano.
Só não piso em linhas intencionais.
Minha cidade ostenta um charmoso aspecto pós-apocaliptico de ruína grega. Tenho escadas para o nada, colunas que sustentam nada, arbustos e trepadeiras que realmente surgem do nada por meio das fraturas da calçada. Nas quais eu piso.
Essa é a roupa da minha cidade. A mesma de um pré-adolescente filho de pais divorciados, que recentemente deixou de ser vestido pela mãe e está para comprar seu primeiro CD de punk. Minha cidade está ficando rebelde enquanto eu desço sua rua.
Por mais que eu ande, nunca chego onde queria ou deveria chegar, pois a música nunca acaba antes que a calçada. O sinal está aberto e isso não é para mim. Eu vejo a luz verde, o fio dos postes e a lua cheia na grande tela de profundidade púrpura. O céu da minha cidade não é uma imensa obra de arte pintada por deus, não. É um ornamento de escritório: bicolor, comportado, de certo requinte e estilo, nenhuma informação. Ocupa uma parede.
O céu da minha cidade não tem estrela.
Me atravessam os ônibus e me pergunto se pessoas valem a pena. Elas têm contas a pagar, lugares a chegar e costumeiramente atribuem-se o trabalho e a capacidade de criar seres humanos. Checam o resultado dos jogos, o dinheiro da passagem, o último sucesso da rádio preferida do motorista. Precisamos comprar, limpar, jogar fora, abrir espaço para um novo móvel e desocupar uma parede e nossas mentes. Entregar presente e encomendas e por obrigação, temos que nos divertir. Em grupos, de forma segura e com trabalho alheio e garantia que poderemos voltar a salvo e a tempo. Tomamos remédios nos horários certos, mantemos os serviços institucionais em dia e nos olhamos nos olhos quando der tempo.
Pessoas não valem a pena.
O sinal fecha e a vida deve parar. Eu atravesso a rua e a vida. Do outro lado, outra calçada, novas esperanças e de volta a minha infância, logo se vê que as regras são as mesmas. Eu desci a rua e cheguei ao mesmo ponto onde sempre cheguei. Os postes se acabam a minha frente e se acaba a cidade, daqui eu nunca passei.
Daqui eu volto.

Um comentário:

  1. "O céu da minha cidade não tem estrela.
    Me atravessam os ônibus e me pergunto se pessoas valem a pena. Elas têm contas a pagar, lugares a chegar e costumeiramente atribuem-se o trabalho e a capacidade de criar seres humanos."

    *-----* Adorei!

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