quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O idiota

Depois de muitos outros, o idiota sobe ao microfone, não senta no banquinho preto, fixa o olhar na luz do holofote e tateia a eletricidade no microfone.

Boa noite - E leva um choque - Ah...porra... Er...Eu...eu me lembro bem de estar aqui.
Sim.
Eu me lembro bem de estar aqui e em todos os outros lugares onde eu poderia estar agora. Tenho essa sensação faz um tempo, não sei quanto não, mas eu não tinha ela quando era criança. O idiota baixa os indicadores, que encontravam-se erguidos ao lado da cabeça. Relaxa os ombros como quem desiste.

Muitas coisas me são assim. Eu sempre estive me perguntando se acontece com as outras pessoas. Não só com alguém mais, eu me refiro a todas as outras pessoas. Eu me refiro, por exemplo, ao momento exato em que eu percebi que existia. Vocês devem entender, essa coisa de existir e tudo mais. Tinha cinco anos e olhava para o chão, ouvindo a voz de alguma das minhas tias falando pra minha mãe. Era alguma coisa que eu não deveria estar escutando, mas que ninguém fazia muita questão de poupar dos meus ouvidos porque eu não entendia. Mas aí me vem novamente. Eu não entendia e ainda assim tinha aquela intuição, que hoje me é óbvia como conceito e não apenas instinto, de identificar segredos sem que fosse pedido para guardá-los. Alguma coisa que me faria chorar depois de esfaquear alguém ainda que por isso me viessem aplausos num vento que deveria me trazer reprovações. O idiota move os pés e balança o corpo, inquieto como se alguém contestasse uma certeza. Porque saibam, o que me impede de quebrar seus pescoços...reergue os indicadores - O que me impede de sair por este salão pisando suas cabeças e estuprando seus homens e suas mulheres não é, sob hipótese alguma, o medo daqueles guardas, não é de nenhuma forma o medo de sentir seus sapatos pressionando minha boca ensanguentada contra o chão. Muito embora seja isso que o que irá acontecer e muito embora eu toda a dor que disso virá, não é nem de longe esse temor que me impede. É... eu não sei, outra coisa.
E é disso que eu estou tentando falar, não são os fatos, não é o medo de estar sozinho. É a dúvida, minha vontade de ser qualquer outro e noutros corpos sentir inalcançável coceira na sola do pé, a TV ligada ainda que muda e sem imagem, a capacidade de se saber que está sonhando ou de criar mundos e episódios nas sujeiras das paredes, o espasmo da lembrança de um momento de vergonha, passar horas vendo nuvens brancas no céu azul e esquecendo todas as descobertas sobre o sentido de se estar aqui...
Não me basta que alguém levante a mão e diga já passei por isso, a não ser que esse alguém também possa trocar sua alma com a de meu corpo... O idiota baixa a cabeça e fecha os olhos, sob o palco a platéia entorta bocas, balança cabeças e troca olhares comentando a uma suposta obviedade em tudo o que foi dito. Um próximo sobe ao palco, senta-se e entrelaça os dedos. Sente envergonhado o calor da forte luz branca em seu rosto.

então senhoras e senhores, boa noite...

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