segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Hans

Hans era um zumbi alemão que vivia no centro da cidade. Haviam grandes telões nas paredes dos arranha céus, exibindo amostras nonsense de pesadelos vídeo- musicais, celebridades mortas e noticiários, sob um noturno céu multicolorido e movimentado, marcado por aquarelas permanentes em forma de fogos, penetrado por antenas iluminadas com neon, rasgado por espaço- naves, estrelas e anjos cadentes e orações via satélite. Ainda que misantropo, Hans não tinha consciência de sua própria condição. Ainda que Joana ainda não tivesse partido, já se sentia sozinho.

Não há muitos registros de relações harmoniozas entre meio-mortos e artificialmente vivos, mas os vizinhos dizem que Frank já era como que da família, as línguas más-soltas afirmam até que não só era membro integrante como necessário. Hans não trabalhava e Joana era zumbi de circo. Frank operava telemarketing.

Fazia pouco menos de um mês que se podia ver o encontro diário dos artistas do Mondo (I)real no galpão abandonado, havia pouco tempo que Joana encantara-se pelo percussionista da banda e decidira aprender acrobacias, malabares e receitas veganas. Por vezes, entre uma pirueta e outra, podia-se ver uma perna voando ou um olhos virados, mas todos eram conscientes, sorridentes, equilibrados. O vizinho do 512 sempre descia para oferecer suco, vestido com alguma lingerie, ainda que comportada.

A noite em que Joana foi embora foi dessas de céu muito preto e luz muito clara. A imagem de Hans sentado nas escadas segurando os rubros globos oculares nas mãos não era de difícil reprodução, rodeado de papéis de panfletos, jornais e embalagens de metanfetaminas, enquanto Frank subia e descia os lances numa aparente pane de sistema. Joana lá fora, guardava os malabares na Combi colorida, entre sorrisos, soluços e engasgos.
- Você realmente não quer vir?
- Mas como?
- Ele é só uma porra de uma lata, Hans.
- Fala baixo.
- Eu só quero que você saiba que isso aqui não é o fim, que nossos corações não batem, mas se encontram quando nos abraçamos.
- Se for pra falar essa merda, vai logo.
- Eu vou te mandar pensamentos felizes.
- Ai, caralho.
E assim ela se foi, deixou pra trás uma porta inteira do guarda-roupa ocupada de roupas e esperança. Nunca voltou. Mesmo depois que o movimento se acabou e a tenda criou mofo. Só chegaram postais.
Hans colocou os olhos de volta nas órbitas, tirou a cabeça de cima do pescoço e a manteve pressionada contra o peito por três dias até que finalmente decidiu subir ao seu apartamento.

A morte-e-vida de Hans não ia muito além das paredes do prédio, cuidava de sentir falta, manter a sobrevivência. O noticiário anunciara a substituição dos modelos beta o mais breve possível e desde então criou-se certo desconforto social com a inquietação de todos os X-114, Frank desenvolveu paranóia, depressão e um desolador quadro esquizofrênico. Tentou suicídio de diversas formas, desde a ingestão de líquidos fatais como limonada até o vazamento proposital de fluido. Consta que Hans fez o possível, que Frank duraria, que tudo daria o que deveria dar.

O laudo médico, mecânico e policial daquela noite despertou horror durante três minutos do noticiário. Foram encontradas as roupas de Joana jogadas ao chão, comentam que Hans vestia uma delas durante o maquinocídio e que Frank foi sexualmente violentado após sua morte. Essa manhã muitos robôs e zumbis saíram em passeata em prol do movimento de humanização das máquinas inteligentes.

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